O confronto com a morte de Jesus, sobretudo pelo seu traço escandaloso, foi extremamente significativo para a comunidade cristã nascente. Muitos se perguntam o porquê da recusa de Pedro a aceitar os anúncios da paixão de Jesus (cf. Mt 16, 13-23; Mc 8, 27-33; Jo 6, 67-71). Mas o mais impactante disso tudo está no fato dos discípulos terem se dispersado quando a morte de Jesus se tornou uma realidade e só terem se reagrupado depois da experiência da ressurreição. O que está por trás dessa recusa, sobretudo a recusa àquela morte no madeiro? Para entender minimamente este fato, é necessário partir da prescrição contida em Dt 21, 22-23, que diz: “se um homem, culpado de um crime que merece a pena de morte, é morto e suspenso numa árvore, seu cadáver não poderá permanecer na árvore à noite; tu o sepultarás no mesmo dia, pois o que for suspenso é um maldito de Deus”. A morte escandalosa de Jesus na cruz fez com que muitos o julgassem a partir desta lógica de compreensão.
Por trás desse entendimento, está uma forte tendência teológica, por sinal, cada vez mais na moda em nossos dias, isto é, a teologia da retribuição. O espírito contemporâneo, aparentemente, abandona qualquer relação com algo que lhe pareça ter vínculo com o sofrimento. O avanço da técnica, o advento da subjetividade, o pragmatismo, as forças de capital, entre outros aspectos, ajudam a entender a rejeição da sociedade hodierna a tudo quanto possa apresentar-se como cruz. E, como que numa correspondência a esse desejo de não sentir dor, cresceu muito nos últimos anos as correntes religiosas, ditas cristãs, que têm sua base na doutrina teológica da retribuição, prometendo, assim, um cristianismo só de glorias e riquezas, abandonando, assim, um dos elementos fundamentais da fé cristã, a cruz.
Historicamente sabe-se que a doutrina sobre a retribuição tem raízes na sabedoria do Oriente Antigo. Esta, por sua vez, penetrou na cultura religiosa de Israel e incorporou-se formalmente à teologia através da codificação legal deuteronomista. Ela responsabilizou-se por desenhar certa imagem de Deus, aprisionando-o em estruturas de previsibilidade, engendrando-o numa relação de causa e efeito. Deus é colocado a serviço de interesses individuais. Toda essa imagem de Deus reflete-se, portanto, nas relações humanas e no próprio modo como o ser humano se vê. Este, por sua vez, passa a se pautar em certa ideologia de dominação, na qual os ricos e poderosos eram considerados privilegiados e abençoados e os pobres considerados desprezados.
Aplicando essa compreensão teológica ao modo com Jesus morre, percebe-se que ele morrera como um não privilegiado, como um maldito, afinal, além de morrer suspenso no madeiro, morrera também pobre, jovem e sem descendência. É a maldição potencializada, pois, para essa teologia dominante, abençoado era quem muito vivia, muito possuía e quem tinha grande descendência. Entender isso é significativo para entender a frustração dos discípulos com a morte de Jesus.
Jesus morre não circunscrito no âmbito de uma “bela morte”. Além de ser considerado um mal feitor político e religioso, no alto da cruz ele ainda exclama: “meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (cf. Mc 15,34b), o que é questionador: como é possível que alguém que anuncia Deus e seu reino de forma tão misericordiosa pode morrer como maldito? Como pode ser subjugado a tão grande humilhação? Para entender isso é fundamental perceber o vínculo profundo que, desde sua vida pública, Jesus nutria com seu Deus e Pai e com o reino vindouro deste. “Apenas naquilo, pelo que e para o que ele vivia, é que se compreende o esplendor do seu viver e também o espanto do seu morrer” (MOLTMANN, 2014, p.192).
O salto substancial para uma mudança de visão dos discípulos em relação à morte de Jesus virá com a experiência da ressurreição. A literatura paulina dá base para entender como os primeiros discípulos encarnaram o mistério da cruz de Cristo em suas vidas. Ninguém mais do que Paulo, no Novo Testamento, deu-nos tantas reflexões sobre o mistério da cruz, muito provavelmente porque os conflitos e rejeição à cruz de Cristo como fenômeno escandaloso se fez sempre presente em sua vida apostólica por meio dos imensos debates com missionários de linha judaizante. Sua experiência de vida ajuda-nos a entender porque ele passou a ser tão grande defensor do mistério da cruz. Em Gl 3,13, Paulo se mostra convencido de que a maldição expressa em Dt 21,22-23 não se aplica com justiça a Jesus. “Paulo reconhece que o amaldiçoado no madeiro é o Filho de Deus, isto é, à luz da ressurreição, a cruz deixa de ser o lugar da maldição e passa a ser o lugar da salvação. Por isso, Paulo pode exclamar aos coríntios: ‘nós, porém, anunciamos Cristo como crucificado, para os judeus um escândalo, para os gentios uma loucura’ (1Cor 1,23).” (SHNELLE, Udo, 2014, p. 550-551).
Desse modo, percebemos que aquele Jesus seguido quotidianamente, “por certo, foi crucificado em fraqueza, mas está vivo pelo poder de Deus” (2Cor 13, 4a) e isso é importantíssimo, pois esse foi o passo necessário para que os primeiros cristãos passassem a compreender que cruz e ressurreição não se dissociam. Olhar para aquele que ressuscitou é também contemplar aquele que transpassaram. Isso afetou profundamente os discípulos! Foi esse deixar-se afetar por um “algo” que aconteceu com Jesus que os fez perceber a salvação se revelando, que os fez regressar (cf. Lc 24,13-35) e recompor-se como a comunidade dos cristãos, daqueles que fizeram experiência com Jesus, vivo, morto e ressuscitado, que, pela fé, se chama Cristo.
Rubens Rodrigues Chaves
Diácono transitório da Arquidiocese de Teresina