Pe. Igor Torres
Mestrando em Bioética no Pontifício Ateneu Regina Apostolorum
Por ocasião dos 150 anos da proclamação de SÃO JOSÉ como Patrono da Igreja universal, pelo Beato Pio IX, o Papa Francisco presenteou a Igreja com uma Carta dedicada ao esposo de Maria e pai adotivo de Jesus. Muitos elementos teológicos e espirituais podem ser colhidos da sua leitura atenta. Aqui nos deteremos em alguns aspectos morais, sobretudo bioéticos, da Carta PATRIS CORDE (“Com coração de pai”). Preferimos reportar em muitos momentos o texto do Santo Padre, privilegiando sua originalidade e clareza.
Como premissa, consideramos que a devoção a São José tem um “valor exemplar” muito sentido por toda a comunidade cristã. Modelo de pai e guardião da Sagrada Família, tem seu lugar na liturgia oficial, nas orações familiares, na espiritualidade dos movimentos e grupos, na invocação pessoal e comunitária. O vínculo especial com Maria e Jesus (“o menino e sua mãe”, expressão comum nos Evangelhos da Infância) nos dá a dimensão do seu lugar privilegiado como “ministro da salvação”. Resumo dessa confiança filial é o conselho de Santa Teresa d’Ávila – analogia ao texto de Gn 41,55: “IDE A JOSÉ!” – apontando no Santo Patriarca do Novo Testamento um poderoso intercessor.
O Papa Francisco não menciona no documento a discussão sobre a idade de José. Limita-se a apresentá-lo conforme o relato dos Evangelhos e a sensibilidade de um devoto de longa data. Assim, nos ajuda a entender que, independentemente da juventude ou dos anos acumulados, São José “colocou-se inteiramente ao serviço do plano salvífico”, como afirma São João Crisóstomo.
1. SÃO JOSÉ, PATRONO DOS TRABALHADORES E DA “BOA MORTE”
Na introdução da Carta, o Papa recorda quatro títulos atribuídos a São José pelos Romanos Pontífices e pela devoção popular: “Padroeiro da Igreja Católica”, “Padroeiro dos operários”, “Guardião do Redentor”, “padroeiro da boa morte”. O tema do trabalho e da boa morte tocam de perto a Bioética, a partir da sua relação com a família e a saúde humana.
A mesa de Nazaré, onde se servia o Filho de Deus, era nutrida pela vida operosa do santo carpinteiro. O silêncio de José guardava um ensinamento diário: “com ele, Jesus aprendeu o valor, a dignidade e a alegria do que significa comer o pão fruto do próprio trabalho”. “Como poderemos falar da dignidade humana sem nos empenharmos para que todos, e cada um, tenham a possibilidade dum digno sustento?” A órbita do trabalho sofre, hoje, as mesmas violências que o mundo da família. Relações contaminadas pelo egoísmo consumista, competição acima da fraternidade. O trabalho deixou de ser uma prioridade social porque desligou-se moralmente do núcleo familiar, perdendo, ainda, o sentido de colaboração com a obra divina. Ciente das consequências dramáticas da pandemia em curso, o Santo Padre formula uma prece: “Peçamos a São José Operário que encontremos vias onde nos possamos comprometer até se dizer: nenhum jovem, nenhuma pessoa, nenhuma família sem trabalho!”.
São José é invocado também como padroeiro da boa morte. Pessoalmente, lembro a oração que aprendi desde acólito, na voz insistente do meu santo pároco: “Oh São José, pai adotivo de Jesus Cristo e verdadeiro esposo da Virgem Maria, rogai por nós e pelos agonizantes deste dia. Amém”. Com o fenômeno do crescimento da expectativa de vida, os efeitos desse incremento nos sistemas de saúde e a “hospitalização” da morte, é difícil até imaginar um pai suspirando entre os braços de Jesus e Maria, no escondimento de Nazaré, até a hora derradeira. Se não é possível dar um passo atrás nesse processo, pelo menos deveríamos meditar sua qualidade ética e espiritual. Reconduzir a família ao mistério da morte como “passagem”, e não como simples “evento médico”. A presença de Jesus e Maria no leito de agonia do Santo Patriarca é o ícone mais consolador da morte cristã: não porque Maria e Jesus sejam “objetos de devoção” ao seu redor, mas porque esposa e filhos constituem o verdadeiro testamento de um pai.
2. SÃO JOSÉ E A PANDEMIA
O Papa Francisco volta algumas vezes, durante a Carta apostólica, ao tema da pandemia. São José é um personagem que lhe transporta, por analogia, aos rostos silenciosos desse tempo de provação, aos guardiões da vida e da esperança em diversos ambientes, desde o círculo familiar, passando pelas estruturas de saúde até as atividades econômicas. Olhando para São José, todos podem encontrar meios eficazes de transcender – e não apenas suportar! – a atual crise sanitária. Rezar, colaborar com paciência, compadecer-se, oferecer-se a Deus. Além da missão de tutelar os deveres imprescindíveis, com um zelo e precisão que superam as obrigações contratuais. É tempo de generoso voluntariado ou de espera voluntária, sem rancores e difamações, remediando com o diálogo o vírus da divisão, “tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade!” –
3. SÃO JOSÉ E O REALISMO CRISTÃO
Na mesma estrada, de uma existência radicalmente evangélica, o Papa recupera a partir de José uma importante categoria moral: o realismo cristão. Ouso dizer que aqui oferece a moldura para uma infinidade de outros temas, inclusive os tópicos clássicos da moral cristã no campo da sexualidade e da defesa intransigente da dignidade da pessoa. “A vida espiritual que José nos mostra, não é um caminho que explica, mas um caminho que acolhe”. Acolher o “significado oculto” do plano de Deus exige “deixar de lado a ira e a desilusão para – movidos não por qualquer resignação mundana, mas com uma fortaleza cheia de esperança – dar lugar àquilo que não escolhemos e, todavia, existe”.
O rosto humano do Pai misericordioso da parábola pode ter os traços de José, comenta o Papa Francisco, porque era a semblante paterno mais próximo de Jesus. Só um coração de pai é capaz de fundir realismo e misericórdia. Aquele “realismo cristão que não deita fora nada do que existe. A realidade, na sua misteriosa persistência e complexidade, é portadora dum sentido da existência com as suas luzes e sombras. É isto que leva o apóstolo Paulo a dizer: «Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus» (Rm 8, 28). E Santo Agostinho acrescenta: tudo, «incluindo aquilo que é chamado mal». Nesta perspectiva global, a fé dá significado a todos os acontecimentos, sejam eles felizes ou tristes”. Esta citação do Santo Padre é uma chave para atravessar os desafios do nosso tempo, conciliando verdade e amor, entrando pela porta estreita sem fechá-la para os outros. “O acolhimento de José convida-nos a receber os outros, sem exclusões, tal como são, reservando uma predileção especial pelos mais frágeis, porque Deus escolhe o que é frágil (cf. 1Cor 1, 27)”.