Lamentando profundamente a primeira morte por COVID-19 no Piauí, resolvi escrever aos meus conterrâneos.
Sou o Pe. Igor Torres, do clero de Teresina. Moro em Roma, capital da Itália, onde estudo Bioética no Pontifício Ateneu Regina Apostolorum. Junto à comunidade sacerdotal do Colégio Pio Brasileiro, vivo uma rígida quarentena imposta pelas autoridades italianas e acompanho de perto, através de amigos, a dramática situação de Bérgamo, atual epicentro da pandemia.
Confesso que é difícil entender o que está acontecendo no Brasil. Desde o início da epidemia na Ásia, chegando com seu efeito devastador à Europa e, por fim, à Oceania, à África e à América, houve razoável consenso: o cenário é grave! Líderes mundiais, da direita e da esquerda, do centro e da periferia, do norte e do sul do planeta, convidam os cidadãos à “maturidade solidária”.
Em nenhum outro lugar do mundo o lema #fiqueemcasa ganhou conotação agressiva, destrutiva, ou foi interpretado como absurdo. Pelo contrário, todos os profissionais responsáveis por garantir os serviços básicos – gestão pública, saúde, alimentação, habitação – pedem unânimes: “por nós e por nossas famílias, não insistam, #fiquememcasa! Deixem o campo livre e rezem (torçam) por nossas equipes!”.
Na Itália, por exemplo, a hashtag #iorestoacasa é o modo mais carinhoso de dizer: eu me importo COM você e faço a minha parte! É claro que muitos precisam sair – repito, para garantir os serviços básicos –, e por estes nós repetimos: #euficoemcasa POR você.
Talvez em todos os outros lugares do mundo as palavras “vida”, “idosos”, “saúde” tenham ganhado um novo sentido, mais humano e menos estratégico! Ainda que por um instante as grandes potências globais relativizaram seu ritmo frenético e recuperaram a primazia da vida e do cuidado. A pandemia é uma prova de solidariedade. A Europa percebeu que precisa de um novo modelo. Resumo dessa certeza é a voz profética do Santo Padre na praça vazia de São Pedro, transformada ontem em altar do mundo.
Confesso que também estão cravadas em meu coração as imagens de Bérgamo arrasada por um inimigo invisível. Quando alguém “minimiza” os efeitos do vírus, eu juro que na minha cabeça passam cenas de horror: caixões amontoados esperando a cremação; velórios guardados no coração dos familiares; filhos que não viram seus pais depois da internação; gente que, mesmo com suas comorbidades, nunca esperava enfrentar uma guerra assim violenta e devastadora.
Talvez eu seja vítima de muita sensibilidade… Quem sabe eu esteja vendo tudo muito de fora, ou melhor, do país mais atingido! Os primeiros a socorrerem as vítimas da economia na Europa foram os seus governos. Cientes de que nenhum cidadão é culpado de crises, epidemias, recessões. Os que precisam seguir trabalhando em virtude da essencialidade de seu serviço têm o dever moral de fazê-lo. Justamente para eximir do risco todos os demais. Enquanto ao governo constituído cabe empenhar esforços pela salvaguardar a todos. Nenhum político é eleito para favores, mas para deveres!
Sei que interiormente muitos já aceitaram a ideia de que a pandemia não passará sem deixar seu rastro de morte, e que no fim das contas (das contas!), não morrerão mais pessoas do que as vítimas da violência e de outras doenças. Então, tudo isto vai se transformar numa onda de postagens, “politizando contra a politização”… Para alguns, a saúde da nação (leia-se “a Bolsa de valores”) depende disto!
São João Paulo II lembrava que qualquer dano à vida constitui em si mesmo ato criminoso, mesmo diante de graves razões estratégicas. O que subjetivamente já é lamentável – o pânico diante dos riscos econômicos – é “subversivo e perturbador” quando se cristaliza em opção social e política contra a vida.
“As opções contra a vida nascem, às vezes, de situações difíceis ou mesmo dramáticas de profundo sofrimento, de solidão, de carência total de perspectivas econômicas, de depressão e de angústia pelo futuro. Estas circunstâncias podem atenuar, mesmo até notavelmente, a responsabilidade subjetiva e, consequentemente, a culpabilidade daqueles que realizam tais opções em si mesmas criminosas. (…) Põe-se também no plano cultural, social e político, onde apresenta o seu aspecto mais subversivo e perturbador (…)” (Evangelium Vitae, n. 18).
Como bioeticista, olho para a nossa luta contra o aborto, pela saúde integral, buscando condições de vida plena, e de todos os lados vejo que estamos igualmente pressionados mais por interesses econômicos que morais. Não é menos exigente nossa campanha pela vida dos idosos e dos que sofrem por qualquer fragilidade!
Enfim, o que peço é muito simples.
Querido leitor, concordando ou não com o que escrevi, a quem quiser simplesmente dizer #fiqueemcasa, não agrida, não xingue, não menospreze. Não transforme em munição um lema de solidariedade. Há os que ficam em casa pelo bem dos que saem, e os que trabalham pensando em primeiro lugar no bem dos que ficam. Há quem fique por medo, e precisa ser escutado; ou por justa decisão, e precisa ser defendido. Quem protege, ama!
Pena que não pretendem reabrir as indústrias do cuidado, estas nas quais estavam começando a trabalhar os filhos que nunca paravam em casa, sempre muito ocupados; até que a quarentena foi roubada de sua positiva construção… Sim, havia gente nas praias, nos bares, nas festas! Mas se o erro de alguns desautoriza o bem, temos ainda algum futuro?
A economia não é o deus de uma nação, nem as empresas podem transpor certos limites éticos. Infelizmente, em tempos de bonança também se conhece a fome e o desemprego; enquanto em outros, menos fartos, aprende-se a partilhar. Pior que a pandemia e a crise econômica é o subdesenvolvimento moral em que elas podem converter-se.
Desculpe-me se, afinal, estou muito dentro de meus sonhos… É que há algum tempo corre um vírus pelo mundo chamado insensibilidade!
A todos abraço e abençoo,
com amizade,
Pe. Igor Torres