Na tradição judaico-cristã, muitos salmos ganharam lugar de destaque. Pode-se notar que o salmo 1, salmo 23, salmo 51, salmo 100, salmo 148 e outros vêm à mente sem muito esforço. O salmo 22, por sua vez, tem um destaque importante, dado que carrega uma guia de estruturação e interpretação para a narrativa da paixão de Cristo, recorda Shipp (2011, p. 47).
A inspiração divina levou Davi a escrever este salmo “extraordinário”. Destacam-se elementos como a beleza da sua poesia, a ousadia das suas imagens e a sua amplidão em âmbito histórico. Além disso, o que mais impressiona é o seu caráter messiânico. Alguns aspectos da crucificação de Jesus Cristo estão nitidamente visíveis: a frase “Meu Deus, Deus meu, por que me abandonaste?” (v.22, 1; cf. Mc, 15-34), os insultos dos espectadores (Sl 22, 6-8; cf. Mt 27, 39-43), a perfuração das suas mãos e dos seus pés (Sl 22, 17;cf. Jo 20, 24-27), a repartição das suas roupas e o sorteio das suas vestes (Sl 22, 19; cf. Jo 19,24).
Em Hebreus 2, 12, vê-se também nas palavras de Jesus uma referência sálmica: “Anunciarei o teu nome aos meus irmãos; em plena assembleia te louvarei” (Sl 22,22). Este fato ajuda a evidenciar ainda mais o caráter messiânico apresentado neste estudo. (Heinemann, 1990, p. 286). Para melhor elucidação, seguem-se em breve análise alguns aspectos: o gênero, a estruturação e a mensagem do salmo.
O salmo 22 é uma súplica impressionante. Encaixa-se impecavelmente nos cânones da súplica individual. A descrição da situação trágica do orante e o apelo ao que é e foi o Senhor, para os outros e para ele, são as motivações que apoiam a súplica. Mesmo se tratando de uma tribulação pessoal, vê-se a promessa de uma ação de graças pública e ritual.
Dentro do gênero, por ser um poema forte, pode-se destacar vários conceitos, a saber: a urgência: é uma súplica que parece ter a sua origem em outras súplicas anteriores não escutadas; a intensidade da expressão: combinação de descrições hiperbólicas (realismo e fantasia), ampla sem ser difusa; nem confessa nem deixa entrever que tenha alguma culpa, além disso, não invoca o castigo de seus inimigos; a prevista e prometida ação de graças tem extensão inusitada: aproximadamente dois quintos do salmo. (SCHÖKEL, 1996, p. 360-1).
Neste salmo, o anúncio da libertação tem consequência imensa, ampla e duradoura. É importante saber também que mais do que nenhum outro do AT, este salmo influenciou nos relatos evangélicos da paixão; supõe e descreve a situação crítica típica, e o realiza com acerto poético insuperado em todo o saltério.
Em sua estrutura, o salmo 22 segue o padrão da maioria dos salmos de lamento individual. Primeiro, uma introdução que pode ser feita em forma de petição, queixa ou mesmo uma ação de graças. Depois, realiza-se uma denúncia, o salmista apresenta o seu problema ao Senhor, podendo ainda incluir uma queixa e uma petição. A última parte contém a resposta e um louvor a Deus feito pelo salmista, por ter sido escutado. Existem divergências entre alguns autores no que diz respeito à estruturação, no entanto, decidiu-se adotar a estrutura anteriormente apresentada, conforme os estudos de Shipp (2011, p. 51):
Vv. 1-2: introdução / destinado a Deus: o salmista tem problemas internos e externos, mas, neste caso, o problema fundamental é com Deus. Aparece aqui uma acusação a Deus, questionando a sua distância e o aparente desinteresse diante da situação.
Vv.3-21a: a seção da denúncia: os elementos da denúncia são repetidos duas vezes pelo salmista com o intuito de enfatizar a sua queixa. Primeiramente, (vv. 3-8 e 9-10) a razão do contraste, depois o primeiro apelo no versículo 11 (com o segundo contraste nos vv. 9-21a), em seguida a queixa (com as ameaças externas, inimigos como animais selvagens e angústia interna com repetição nos vv. 16 – 18).
21b: a seção da resposta. Neste versículo, encontra-se a resposta característica: “sim, livra-me dos chifres do boi selvagem”*. Segue-se um voto inicial de louvor (v. 22 repetido no v.25). Depois, um convite para o louvor (v.23) e a razão para fazer o louvor (v. 24).
Vv. 27-31: o salmo é finalizado com um convite para o louvor caracterizado pelo fato de ser um convite universal.
No salmo 22, nota-se que existe uma relação íntima e pessoal entre o justo e Javé. A prova disso é que o justo faz o uso de “meu Deus” para dirigir-se a Javé. Entretanto, percebe-se que existe uma sensação de ausência, de abandono. Por isso, vê-se um apelo ao passado, faz-se memória. Um exemplo é o fato de que os antepassados confiavam em Javé e eram libertados.
Isso aconteceu, especialmente, no Egito quando os hebreus clamaram a Javé. Ele ouviu o clamor, desceu e libertou. A coragem e a confiança de clamar brotam desse contato com o Deus da aliança. A imagem mais bela de Deus neste salmo é, assim, a do Deus que ouve o clamor do pobre injustiçado e o liberta, levando-o a cantar hino de louvor.
Partindo da narração dos evangelhos, em Marcos (15,34) e Mateus (27,46), pode-se ver Jesus rezando este salmo na cruz. Ele é o justo inocente que clama confiante. A resposta de Deus é a ressurreição. Por isso, é importante atentar-se para todos os clamores que foram ouvidos e atendidos por Jesus ao longo da Sua vida.
Por se tratar de uma súplica de um inocente injustiçado, este salmo é apropriado para as ocasiões de clamor e súplica. A descrição dos injustos (leão, touro, búfalo) recorda a violência nos campos e as lutas dos sem-terra. Além disso, faz pensar nos momentos de solidariedade com os sofredores, quando é possível fazer-se voz dos que não a tem. (BERTOLINI, p. 101, 2006).
Mesmo não podendo relacionar o salmo a um evento específico da vida de Davi, a autoria lhe é atribuída tomando por base a sua árdua odisseia espiritual. Além disso, tendo sido capaz de profetizar, como pode-se notar em At 2, 28-31, é justo que Jesus, sendo herdeiro de Davi, aproprie-se do salmo para melhor expressão do evento da história da salvação. Afinal, não é possível fazer a leitura deste salmo sem lembrar-se do calvário. Mesmo estando fortemente ligado a Davi em seu sentido histórico, é importante vê-lo à luz dos escritos dos Evangelhos. (PATTERSON, 2004, p. 231).
No salmo 22, é possível ver que Jesus faz deste salmo o Seu salmo. Nota-se, a partir disso, a profundidade desta mensagem. Mesmo tratando-se de uma súplica que descreve muito bem o sofrimento do justo, é muito importante ver a sua capacidade animadora: Deus ouve atentamente o pedido daquele que está aflito e dá a Sua ajuda nos tempos de tribulação.
* Nesta citação, para melhor aproximação do sentido original, faz-se o uso de uma tradução do hebraico. Disponível em: <http://www.judaismo-iberico.org/interlinear/tanakh/2622PT.HTM>. Acesso em 08 fev 2017.
REFERÊNCIAS
BERTOLINI, José. Conhecer e rezar os salmos: comentários populares para nossos dias. Paulus: São Paulo, 2006.
HEINEMANN, Mark H. An exposition of psalm 22. Bibliotheca sacra 147. July, 1990. Disponível em: <https://pdfs.semanticscholar.org/188a/a93ec749c8d0dfa278f763401fcaa44bc
81a.pdf>. Acessado em: 03 fev 2017.
PATTERSON, Richard. Psalm 22: from trial to triumph. JETS 47/2. p. 213-33, jun. 2004. Disponível em: <http://www.etsjets.org/files/JETS-PDFs/47/47-2/47-2-pp213-233_JETS.pdf > Acessado em: 07 fev 2017.
SCHÖKEL, Luís. Salmos I: salmo 1-72. São Paulo: Paulus, 1996. (Coleção grande comentário bíblico)
SHIPP, R. Mark. Psalm 22: The Prayer of the Righteous Sufferer. Christian Studies Scholarship for the church. vol. 25, p. 47-59, 2011-2012. Disponível em: <http://austingrad.edu/Christian%20Studies/CS%2025/Psalm%2022.pdf> Acessado em: 03 fev 2017.
Antonio Rômullo Pereira Ribeiro de Sousa
Licenciado em filosofia pelo Instituto Católico de Estudos Superiores do Piauí – ICESPI.
Endereço eletrônico: romullo.sousa@hotmail.com