Pe. Igor Etevan Torres Almeida
Mestre em Bioética
A inauguração do julgamento da ADPF 442, sobre a descriminalização do aborto, suscitou apreensão nos últimos dias. A provocação do PSOL à Suprema Corte brasileira visa à decisão “se a criminalização do aborto, da forma como tipificada nos arts. 124 e 126 do Código Penal, é compatível com a ordem de princípios e valores inscritos na Constituição”, pelo menos no período até a 12ª semana de gestação. Segundo o partido autor da ação, há inoperância do Congresso Nacional sobre a pauta.
Parece ser objetivo do processo, então, identificar a ordem de princípios e valores inscritos na Constituição federal e sua compatibilidade com a penalização do aborto, como requerida pelos artigos do Código Penal vigente, considerando o primeiro trimestre de gestação. Sugerimos a seguir algumas reflexões a partir da primeira peça do julgamento: o voto paradigmático da Ministra Rosa Weber, relatora do processo, inserido no sistema do STF em 22 de setembro de 2023.
A Ministra relatora defende que a gramática constitucional reconhece somente “a pessoa humana nascida como titular dos direitos fundamentais garantidos, sem qualquer ressalva ao nascituro ou embrião”. O nascimento seria, então, o evento criador de garantias fundamentais. Na margem da sua argumentação, anota que o Código Civil brasileiro conhece certos direitos ao nascituro, mas, segundo a Ministra Weber, que só se constatam após o nascimento, isto é, sub conditione. Na sustentação da relatora, essa noção é decisiva: antes do nascimento, não há garantias fundamentais a serem reivindicadas.
O nascimento é mesmo o absoluto fundante, inclusive quando a capacidade de direitos lhe é anterior? O texto constitucional, quando optou por essa redação, não teria feito apenas a escolha de um evento de referência que garantisse o critério básico de acolhimento jurídico e nacionalidade? Pode o nascimento contrapor radicalmente as condições de proteção anteriores e posteriores a ele? O aborto, matando o embrião, não o trará para fora do útero materno, expondo toda a sua violência debaixo da sombra de um nascimento às avessas? A lei não invade o ventre materno em que sentido: para violentar ou para proteger?
O voto, infelizmente, menospreza a argumentação ontológica, embora admita o vocabulário de princípios e valores, garantias fundamentais e direitos universais. Que posição filosófica sustenta esses conceitos sem amparar igualmente a inviolabilidade da vida humana, da sua origem, na misteriosa fecundação, até o seu fim natural? A Constituição é, por acaso, imune à metajurídica?
Quando aproveita os discursos das Audiências públicas, a Ministra relatora aponta para inconclusões da ciência sobre o início da vida e falta de consenso no campo religioso e filosófico. Mesmo essa indefinição, porém, não autoriza agir como por definição da ausência de vida humana; antes, impõe o princípio de prudência. Eis porque o Código Civil, ao conceder certos direitos ao nascituro, provoca uma revisão importante da análise normativa, o que pode ser ulteriormente aprofundado no debate do Estatuto do Nascituro (PL 478/07), na Casa legislativa.
O parto não transforma o nascido, apenas o reposiciona, em nova fase da vida. Nenhuma das atuais células de nosso corpo tem a incrível potencialidade daquela célula viva original – o zigoto – que, depois, por multiplicação e especialização, apenas reproduz as coordenadas biológicas inscritas no início, ao modo de um programa essencialmente detalhista. Não há salto biológico radical depois da fecundação; por isso, não há dúvida a sustentar; e se houvesse, in dubio pro vita. O argumento é predominantemente material, de interpretação biológica e não tanto religiosa ou filosófica.
Por isso, a tradição moral cristã estende até a primeira célula viva as garantias fundamentais, ao preço de parecer intransigente; outros, encurtam os direitos universais e recebem o título de complacentes.
De outra parte, especialmente delicado é o tema da penalidade do aborto, que o Código brasileiro aplica seja à mulher, quando requerente (Art. 124), seja a quem colaborar na interrupção voluntária da gravidez (Art. 126). Ser contra a descriminalização do aborto não significa, propriamente, insistir em graves penas para mulheres que abortam. Sabemos que por trás de um aborto estão outros sérios problemas e, geralmente, a falência do cuidado familiar. Admitimos: muitas mulheres que abortam são vítimas! Como são vítimas, somados na tragédia, os abortados. Remédios abortivos, caseiros ou clínicos, não educam a sociedade, só aumentam no corpo feminino a ferida de uma liberdade solitária.
Para a Ministra Rosa Weber, o dilema está entre garantir a autodeterminação da mulher ou criminalizá-la com uma pena sem fundo constitucional. Estranhamente, a opinião do voto se constrói a partir da determinação pessoal pelo aborto – uma espécie de fenômeno antecipado, desejado, normalizado – e não do discernimento anterior e responsável entre abortar ou não. O conceito de crime não se redefine olhando somente para a transgressão, mas para o agente e suas possibilidades, para a pedagogia dos valores, para a sua implicação na engenharia social. A normalização de abortos clandestinos, por exemplo, não pode justificar o processo de descriminalização, porque o modus que reconfigura a pena não anula o crime.
Recalcular a pena não significa desconsiderar o crime. A criminalização, nesse sentido, é o reforço da mensagem pedagógica que une liberdade e responsabilidade reprodutiva, para homens e mulheres. Não é difícil perceber o movimento por trás da ADPF em questão, dentro de uma agenda ampla e articulada. Conceitualmente, o acento passa da fecundação à formação fetal; juridicamente, a descriminalização dá argumentos à legalização. E o nascituro passa a ser “de ninguém”, filho órfão do prazer livre, como se os ritmos do corpo e da sexualidade não fossem pautados por uma ordem conhecida e o desejo erótico não pudesse ser guiado por um seríssimo respeito à dignidade de toda vida humana.
Há que se considerar ainda a pena natural do aborto sobre a mulher, mesmo quando involuntário ou passados anos do evento abortivo. Se há dores psíquicas e somáticas que pretendem justificar o aborto, há igualmente uma massa nebulosa de sofrimentos pós-aborto que precisa ser considerada. Pautar a forma externa do aborto, admitindo-o, por exemplo, no sistema público de saúde, não corrigirá a dor e a memória brutais do seu procedimento interno ao corpo feminino.
Nesse sentido, a delimitação de 12 semanas para a descriminalização aparenta resolver o problema para os autores da ação processual, como se no primeiro trimestre da gestação, o tamanho e a suposta impessoalidade do nascituro não determinassem ainda um vínculo gerador de sofrimentos. Esta não é, todavia, a realidade psicológica da gravidez. E nem se trata de medir os avanços fisiológicos do embrião, pois tanto a forma vital como a derivação humana são biologicamente estáveis. Além disso, o voto da relatora é praticamente ausente dessa circunstância, já que no pano de fundo está a conclusão, in nuce, pela ampla legalização do aborto como direito feminino de autodeterminação privada.
O limbo de indefinição lógica da 12ª semana de gestação até o nascimento é provocação necessária aos Ministros do STF. A posição da relatora, para quem “a proteção do direito à vida é gradual e incremental” não resolve a complexidade do tema. Ela sugere que as penalidades previstas ao aborto, menores que para o infanticídio ou homicídio, confirmam a lógica jurídica de proteção gradual. No entanto, cabe também a interpretação de que a progressão do dever de proteção não é proporcional ao tamanho da pena, mas à raridade presumida do crime. Assim, no grau máximo, a mãe guardiã de seu filho no ventre só comete o crime motivada por uma espécie de contrassenso, que merecerá sempre um atenuante, não por anulação da forma criminal, mas por agravantes que de algum modo geram uma pena natural complementar. Nenhuma mãe que aborta voluntariamente está livre do tribunal da sua consciência. É justo o que fez a si mesma?
A Ministra Weber propõe, para este dilema, um conceito de força: justiça social reprodutiva. Contudo, se aos direitos não forem conectados os deveres sociais e reprodutivos, a forma de decisão totalmente privada não coincidirá com o projeto social de solidariedade, que envolve renúncias e acordos, nunca contra a vida de alguns, sempre pela vida de todos. A insistência no papel do Estado não redefine a criminalização óbvia do aborto voluntário, apenas reforça a necessidade de iniciativas antecipadas de cuidado, sem excluir, desde antes da gravidez, aquela autodeterminação responsável que educa a mulher sobre si, seu corpo e seus relacionamentos. Lembramos que a contracepção não é a única opção, existem valores e opções mais humanas, naturais, e para quem tem fé, abertas ao amor divino.
A gravidez, com sua complexidade, não se dá por contágio ou adoecimento; afinal, não é doença! Excluídos os tristes casos de violência contra a mulher (objeto de outro arcabouço jurídico), a gravidez é antecedida de causas desejadas com consequências presumíveis. Seja o homem seja a mulher, na sexualidade e em todas as dimensões da vida, precisam conciliar o binômio liberdade-responsabilidade. É nesse caminho que a deontologia médica, por força de juramento, contrapõe-se à prática abortiva; em sentido contrário às posições pouco fieis ao juramento hipocrático defendidas na argumentação da relatora.
Numa espécie de síntese, no n. 44, o voto afirma: “Dar ao direito à vida interpretação no sentido de conferir-lhe proteção absoluta desde o momento da concepção implicaria reconhecer a proibição de qualquer hipótese de interrupção da gestação (em casos de aborto, por exemplo), a despeito da finalidade ou da necessidade de tutela de outro direito ou bem jurídico. Assim como a previsão constitucional originária da pena de morte, em caso de guerra, nos termos do art. 84, XIX (art. 5º, XLVII, “a”). Soluções normativas que subverteriam a lógica do regime jurídico dos direitos fundamentais.” Sim, é exatamente o tipo de subversão que esperamos! Esta pela qual a lei sirva a vida e não a vida se curve à lei, o que se afasta da verdadeira justiça. Nosso voto é pela vida!