Especialista em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global (PUCRS). Mestre em Direito (PUCRS). Presidente da Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos. Professor Efetivo da Universidade Estadual do Piauí do Curso de Bacharelado em Direito (UESPI). Juiz do Trabalho.
Com efeito, um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da (ODS) da Organização das Nações Unidas é o objetivo número 5 que trata da igualdade de gênero. No contexto internacional prevê acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda a parte, além de adotar e fortalecer, como diretrizes, políticas sólidas e legislação aplicável a promoção de igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis.
Nesse sentido, com fins de resguardar a garantia da igualdade de gênero e a preservação dos direitos humanos das mulheres (também independentemente da identidade de gênero e orientação sexual) o Estado do Piauí publicou a Lei nº 7.750, de 14 de março de 2022 que dispõe sobre “assistência humanizada, antirracista e não transfóbica; estabelece medidas sobre o direito a ter uma doula durante o parto, nos períodos de préparto, pós-parto e em situação de abortamento; garantia do direito de se manifestar através de seu plano individual de parto durante o período de gestação e parto; institui mecanismos para coibir a violência obstétrica no estado do Piauí”
A legislação estadual têm vários pontos positivos no sentido de assegurar “o direito à mulher de receber assistência humanizada no pré-natal, durante o parto, pós parto e em situações de abortamento no âmbito do Estado do Piauí.” Mas em alguns pontos, com efeito, normativa em conflito com a Constituição Federal (e por via reflexa com a Constituição Estadual do Piauí) ao tentar regulamentar a atividade da Doula, que somente pode ser feita por lei específica.
Nesse toar, a Constituição Federal garante no seu art. 5º, inciso XIII, que é “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.” Ou seja, para que uma atividade possa ser considerada profissão, necessário que haja lei regulamentando a matéria com todos os deveres, obrigações e responsabilidades daquele profissional, o que ainda não ocorreu com as Doulas, em que pese sua importância no cenário nacional.
A Lei nº 7.750, de 14 de março de 2022, nas suas disposições preliminares, invoca duas Convenções Internacionais para fundamentar seu texto, quais sejam, a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher.
Com efeito, através do Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002, a República Federativa do Brasil promulgou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. O artigo 12 da Convenção trata do direito de acesso a serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar, bem como o direito à mulher da assistência em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, a saber:
Artigo 12
- Os Estados-Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar.
- Sem prejuízo do disposto no parágrafo 1o, os Estados-Partes garantirão à mulher assistência apropriadas em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância.
A Convenção garante à mulher “assistência apropriadas em relação à gravidez, ao parto ao período posterior ao parto”. O direito à assistência apropriada não garante o direito de ter uma Doula durante o parto, como se percebe claramente.
Além disso, o Brasil promulgou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, a chamada Convenção de Belém do Pará, através do Decreto nº 1.973, de 1 de agosto de 1996. Não há nenhum dispositivo do texto legal que discipline sobre o direito da mulher de ter uma Doula durante o parto, em que pese o Decreto trazer o rol de direitos fundamentais da mulher, dentre eles o seu direito de liberdade e de que respeite sua integridade física, mental e moral.
Como dito, o que deve ser ressaltado é que não existe uma Lei Federal que regulamente a profissão de Doula. O que existe é um Projeto de Lei sob o nº 3.946/2021, que dispõe sobre o exercício da profissão de Doula, de autoria da Senadora Mailza Gomes, mas ainda não aprovado. Então, enquanto não houver lei disciplinando sobre os direitos e deveres da Doula não se pode definir a mesma como “profissional”, como faz o art. 10 da Lei 7.750, de 14 de março de 2022.
O art. 11, §2º, da Lei nº 7.750, de 14 de março de 2022 diz que a doulgem e suas atividades auxiliares somente podem ser exercidas por pessoas legalmente certificadas e inscritas em instituições de classe oficializadas, tais como associações, cooperativas e sindicatos de jurisdição na área onde ocorre o exercício. Contudo, tais entidades mencionadas pela lei não possuem poder de controle da atuação da doulagem, eis que são entidades de natureza puramente privada. Como as Doulas não são regulamentadas por lei – e por isso a atividade não pode ser chamada de profissão – não possuem qualquer tipo de controle legal sobre os procedimentos que podem ou não adotar.
Nesse sentido, portanto, para que os deveres e obrigações da Doula possam ser claramente definidos, inclusive suas responsabilidades nos procedimentos permitidos, necessário, antes, que houvesse lei federal definindo a matéria, pois sequer órgão de controle de classe elas possuem.
Não se pode confundir a Classificação Brasileira de Ocupação que é meramente de ordem administrativa, instituída por portaria ministerial, com a regulamentação profissional, que é feita por lei. Assim, as Doulas não podem ser consideradas profissionais habilitadas legalmente, como quer fazer crer o art. 10 da Lei nº 7.750, de 14 de março de 2022.
Outro ponto sensível do texto legal diz respeito ao Programa Nacional de Segurança do Paciente, instituído pela Portaria nº 529 de 2013 do Ministério da Saúde. A lei estadual em questão diz que a Doula pode ingressar no ambiente de trabalho de parto e de pós parto, se necessário, com seus instrumentos de trabalho desde que respeitadas as disposições da Portaria.
Contudo, quem fará tal controle de acesso? O responsável médico pela equipe do Plano Individual de Parto? Esse é um problema porque se a Doula ainda não possui profissão regulamentada por lei, como dito em linhas passadas, tal responsabilidade, em tese, poderia ser discutida em relação ao profissional médico (ou enfermeiro) que compõe a equipe e que detém conhecimentos científicos para tanto. O art. 7º, inciso I, da Portaria nº 529 de 2013 do Ministério da Saúde que cria o Comitê de Implementação do Programa Nacional de Segurança do Paciente (CIPNSP) disciplina vários procedimentos que devem ser adotados (I – propor e validar protocolos, guias e manuais voltados à segurança do paciente em diferentes áreas, tais como: a) infecções relacionadas à assistência à saúde; b) procedimentos cirúrgicos e de anestesiologia; c) prescrição, transcrição, dispensação e administração de medicamentos, sangue e hemoderivados; d) processos de identificação de pacientes; e) comunicação no ambiente dos serviços de saúde; f) prevenção de quedas; g) úlceras por pressão; h) transferência de pacientes entre pontos de cuidado; e i) uso seguro de equipamentos e materiais;
Quem ira definir, então, “se necessário” a Doula ingressar com seus instrumentos de trabalho no ambiente de parto e pós parto? Se essa autorização cabe ao médico, com ele então seria possível se discutir eventual responsabilidade em relação a um procedimento mal sucedido pelo Doula.
Veja-se que a lei estadual garante até mesmo o manuseio de “equipamentos fisioterápicos” (art. 12, I) a Doula sem que a mesma tenha habilitação técnica para tanto, nem reconhecimento profissional através de lei específica.
Outro ponto que merece destaque diz respeito à assistência humanizada em situação de abortamento. Nesse sentido, a Lei Estadual garante à gestante e parturiente o direito de ter uma Doula em situação de abortamento (art. 4º, IV). Quanto ao tema do aborto, o Código Penal diz claramente no seu art. 128 as hipóteses em que não se pune aborto praticado por médico, quais sejam: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
E se a assistência humanizada está sendo feita na residência da gestante e parturiente, sem a presença do médico, por exemplo. Quem poderá definir se o abortamento está dentro das hipóteses legais ou não? A Doula teria condições de fazê-lo já que não se trata de profissão regulamentada? Até que ponte se poderia discutir a responsabilidade do médico em tal ato?
Assim, percebe-se que a lei estadual padece de alguns vícios de inconstitucionalidades, a saber: a) garantir à gestante e parturiente o direito a ter uma Doula durante o parto, nos períodos pré-parto, pós-parto e em situação de abortamento (art. 4º, IV) sem que haja definição de limites de atuação da profissional via lei federal; b) definir critérios para a Doula ser considerada profissional habilitada, diante de vácuo de lei federal para tanto (art. 10); c) definir procedimentos que podem ser efetivados pela Doula, sem definir as responsabilidades por possíveis erros, o que somente poderia ser feito por lei federal específica (art. 11); d) disciplinar que a Doula tem poder de ingressar no ambiente de trabalho de parto e de pós parto, se necessário, sem definir a quem cabe autorização para tanto, o que pode induzir a uma responsabilidade direta (ou indireta) de médicos e/ou enfermeiros responsáveis pela garantia do Programa Nacional de Segurança do Paciente (art. 12); e) possibilitar utilização de instrumento de trabalho, como por exemplo equipamentos fisioterápicos (art. 12, I), que somente podem ser utilizados por quem possui habilitação técnica para tanto.
Em conclusão, não poderia o Estado do Piauí legislar sobre a matéria, definindo limites de atuação da Doula, sem que haja legislação federal definindo os direitos, deveres e responsabilidades de tais pessoas. Sabemos que estamos tratando com vidas, o que envolve conhecimentos técnicos e científicos, mesmo diante da importância da garantia dos direitos humanos das mulheres e da assistência humanizada. Tal ausência normativa pode comprometer a atuação de profissionais da saúde (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas) que atuam mediante controle rígido de suas entidades profissionais e sob o manto da responsabilidade civil e criminal pela prática de seus atos.
Por: Carlos Wagner Araújo Nery da Cruz, Especialista em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global (PUCRS). Mestre em Direito (PUCRS). Presidente da Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos. Professor Efetivo da Universidade Estadual do Piauí do Curso de Bacharelado em Direito (UESPI). Juiz do Trabalho.