As últimas semanas têm sido marcadas pelo forte e amplo debate em torno das medidas de contenção da Covid-19, em praticamente todas as regiões do Brasil. Assistimos a propostas de todos os tipos: desde a exclusão de qualquer medida restritiva, como se a pandemia não existisse, até as tentativas de rigoroso lockdown, passando por alternativas mais ou menos moderadas, diante das exigências de manutenção da vida social.
As atividades religiosas foram duramente penalizadas desde o início da pandemia. Sabemos que a fé cristã é por si mesma comunitária. É um princípio irrenunciável, expresso particularmente na liturgia, quando a comunidade dos fieis eleva a Deus, reunida, o culto de adoração, louvor, perdão e súplica. Trata-se, ainda, de um elemento antropológico: nenhum ser humano “basta a si mesmo”, nascemos em relação e assim vivemos, nenhum homem ou mulher foge dessa realidade.
Por outro lado, se o anseio de reunir-se, pensando em razão tão nobre como a celebração litúrgica, é válido e positivo, o cuidado pelo outro, e assim o cuidado pela sua saúde, impõe um dever anterior: preservar as condições de vida. Por isso muitas dioceses emanaram decretos adequando a vida litúrgica em vista das orientações de segurança sanitária. “Adequando” e não “excluindo-as”! A evangelização é bela porque pode acontecer sempre. Não existe distância para os que se amam no amor de Deus e reconhecem que os primeiros templos são nossos corações, consagrados desde o Batismo. Mesmo a Eucaristia, qual mistério cósmico, consegue abraçar não só os que se unem conscientemente pelas redes, TV e rádio, mas todos os que fazem com o Senhor um ato de comunhão pensando no mistério da Santa Missa.
Nesse panorama, vejo com preocupação duas visões que gostaria de comentar ao prezado leitor.
A primeira é a separação ultimamente despercebida entre o ato de respeito às restrições e a intenção de cuidado e preservação da vida. Precisamos atar o gesto ao seu significado! Como cristãos, nossa renúncia à celebração presencial não é fruto duma imposição da lei civil, embora com ela se obedeça às normativas das autoridades constituídas. Antes de tudo, é fruto da consciência batismal o nosso sacrifício, unido ao de Cristo na Cruz, pelos que a ele estão unidos nos hospitais e nas casas, provados pela doença ou por suas consequências. Fazemos pelo Evangelho, que manda caminhar dois quilômetros quando o irmão precisa que caminhemos um só! Fazemos em nome daquela solidariedade que nos une até aos inimigos, a custo do desprezo e do esquecimento!
Como Capelão do Hospital HGV, lembro de ter visto familiares aos quais perguntava sobre sua vida e profissão, imaginando o que teriam renunciado para acompanhar um ente querido. Às vezes vinham do interior, deixando sua pequena roça ou um filhinho, para ladear o pai, a mãe, a tia etc. A resposta era sempre cheia de esperança: “Deus ajudando, padre, ele vai ficar bom! E todo sacrifício vai valer a pena!”. Não contavam suas moedas, mas os dias de vida…
A segunda, talvez mais preocupante, é a falsa ideia de que algumas restrições ao culto sejam restrições à ação de Deus diretamente. Se assumirmos essa posição, negaremos a beleza de um Deus onipotente, cuja graça supera infinitamente as leis humanas, inclusive aquelas positivadas pelo direito. A ação de Deus não se limita por decretos! Quando falamos da liberdade de culto “ameaçada”, referimo-nos à tentativa de limitar o direito natural de celebrar a liturgia, o que obviamente é imoral! Entenda-se, porém, que mesmo se leis injustas tentassem proibir a liturgia, em nenhum caso poderiam constranger a ação da Graça divina, que opera segundo a liberdade do Espírito de Deus, não obstante o que se interponha historicamente. A observação das normas, conforme a orientação de nossos Pastores, não ofende a Deus e ainda pode contribuir para o seu louvor no bem dos irmãos.
Para concluir, relembro que a nossa liberdade foi conquistada em Cristo! Vivemos a liberdade de filhos e filhas, que não só abandonaram o jugo do pecado como abraçaram o mandamento perfeito. Não somos, portanto, vítimas da lei civil, mas protagonistas na opção pela lei do amor.