“Mariama, Mãe querida, problema de negro acaba se ligando com todos os grandes problemas humanos. Com todos os absurdos contra a humanidade, com todas as injustiças e opressões.”
A “Invocação à Mariama”, proferida pelo Servo de Deus Dom Hélder Câmara (1909-1999), então arcebispo de Olinda e Recife, na Missa dos Quilombos celebrada no Dia da Consciência Negra no ano de 1981 possui uma atualidade inegável. A Mãe de Deus, carinhosamente nomeada “Mariama”, foi invocada em favor da causa negra e do combate ao preconceito racial numa verdadeira manifestação de fé e comunhão com os homens e mulheres de todas as raças, cores e cantos da terra.
Nos últimos dias a discussão sobre o preconceito racial ganhou relevo no mundo todo a partir do assassinato brutal de George Floyd, cidadão negro de Mineápolis, em Minnesota (EUA) por um policial branco durante uma abordagem no dia 25 de maio, desencadeando a maior onda de manifestações contra o racismo desde 1968, após a morte do líder pró-direitos civis Martin Luther King. Sob o lema “Blacks Lives Metter” (Vidas Negras Importam), inúmeros protestos se espalharam na nação norte-americana e no exterior num grito pelo fim da opressão e violência contra os negros e negras ao longo da história da humanidade.
Saindo da América do Norte, o que dizer do continente latino-americano e, de modo específico, do Brasil? Na região mais desigual do planeta, a América Latina, as disparidades tocam enormemente a cor da pele ou a etnia: os negros e indígenas têm mais possibilidades de ser pobres e menos de concluírem a escola ou conseguirem um emprego formal em comparação com os brancos. De acordo com a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) em relatório de 2019 sobre o cenário social, a incidência de pobreza é maior nas áreas rurais, e entre indígenas e negros.
Apesar da dita “abolição da escravatura” assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888, passados 132 anos do evento podemos enxergar ainda latente a mentalidade escravagista no território do nosso país. É dominante a ideia de que o negro deve ser sempre subalterno e estar a serviço de todos. Negro não merecem espaços de poder. Basta olhar para os grandes cenários da sociedade e observar quem ocupa os altos cargos e postos de destaque: em sua maioria estão ocupados por brancos. Tudo isso é fruto de um racismo entranhado nas estruturas sociais e que atua cotidianamente no interior das instituições e organizações, provocando uma desigualdade na distribuição de benefícios, serviços e oportunidades para a população negra, classificada como inferior.
Como a história brasileira que nos transmitiram foi escrita por mãos brancas, muitos estudiosos tentaram suavizar o fenômeno da escravidão. A verdade é que a escravidão foi fator de desumanização de todos, senhores e escravos. Os dois viveram a escravidão numa constante atmosfera de medo, violência e rancores mútuos, expressos em agressões verbais, torturas, assassinatos, rebeliões e repressões que marcaram profundamente suas relações. Todo o sentido de humanidade e compaixão extinguiu-se de tal forma na alma que as consequências futuras foram as mais amargas e dolorosas possíveis. Por causa disso, muitos (e às vezes sem se darem conta) reproduzem o discurso escravagista de que os negros e negras, inferiores que são, devem ser tratados com desprezo e marginalizados.
Devido à violência sofrida, os negros e negras escravizados viveram em si um processo de internalização do opressor. Como estratégia de sobrevivência, tiveram de assumir a língua, os costumes e a religião dos senhores, resistindo bravamente à renegação de suas raízes e lutando para alcançar um objetivo que de outra forma jamais alcançariam: a liberdade de seres humanos. A raça negra no Brasil luta através dos séculos pela igualdade que só um processo de humanização plena pode conceder. Humanização trazida no bojo de uma verdadeira revolução estrutural e institucional da sociedade brasileira, quando, enfim, os negros e negras forem verdadeiramente tratados como gente. Negar que existe racismo no Brasil, como afirma parte significativa da população, é demonstração ou de total ignorância do fenômeno ou de uma verdadeira indiferença, pois a discriminação racial toca a todos os cidadãos, sem exceção nenhuma.
“Até quando, Senhor?” O clamor expresso no Salmo 13 ressoa na boca de milhares de irmãos e irmãs negros que morrem moralmente e fisicamente vítimas do preconceito racial. É o clamor de um povo que herdou o sofrimento de seus antepassados cruelmente escravizados cujo sangue corre nas veias e pede justiça. Mas enquanto a justiça não é feita pelos homens, a fé vai fortalecendo os passos da comunidade negra. De acordo com o padre Antônio Aparecido da Silva, professor de Teologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pioneiro da Pastoral Afrobrasileira, falecido em 2009, “o Deus dos pobres se identifica com o povo negro. Deus é negro, caminha com o seu povo e se revela na sua história de marginalização como a única fonte de segurança”.
Nos últimos anos, dentro da teologia da Igreja, emergiu a teologia negra como proposta de reflexão a partir do ser, espaço e atuação da negritude que caminha como povo de Deus. Segundo o mesmo padre, é tarefa principal da teologia afroamericana “ajudar a comunidade negra a compreender a sua fé no emaranhado tecido e na mistura das experiências religiosas”. No centro da reflexão teológica negra são debatidas pautas relacionadas à vida diária das comunidades negras, como a pobreza, a saúde, a terra e a educação, como também as relações com as religiões tradicionais, de modo especial o cristianismo. Estas foram para os negros dispersos pelo mundo um lugar privilegiado do encontro com Deus, que nelas se revelou como fiel e solidário.
Como cristãos, nosso engajamento na luta antirracismo se faz necessário. Não pode haver um seguidor de Cristo que não se interesse pela dor do outro que é marginalizado por uma estrutura secular opressora que prega a inferioridade de raça. A indiferença para com a causa da comunidade negra vai na contramão de Deus para o qual não há acepção de pessoas. (Romanos 2, 11) Providencial foi a manifestação extraordinária da imagem da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida: Maria, num contexto histórico marcado pela escravidão, é representada numa imagem escura e quebrada, manifestando total identificação com os filhos mais sofridos da terra. Retomando as palavras de Dom Hélder na “Invocação à Mariama”, clamo a materna proteção da Mãe do céu morena ao mesmo tempo que afirmo: a causa dos negros é também causa do Reino: “Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão, que é comunismo. É Evangelho de Cristo, Mariama.”
Por Yago Waquim
Seminarista da Arquidiocese de Teresina