O Supremo Tribunal Federal se prepara para julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442, ajuizada pelo Partido Socialista e Liberdade (PSOL). No pedido da ação, postula-se que a Suprema Corte se manifeste para garantir que o aborto até as 12 primeiras semanas de gravidez deixe de ser crime no Brasil, independentemente do motivo que leve a mulher a realizar o procedimento.
A Suprema Corte anunciou que irá incluir em pauta, além disso, a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 5.581, ajuizada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos, que pede direito à interrupção da gravidez de mulheres infectadas pelo zika vírus e em sofrimento mental. É possível que o julgamento dessa ação possa gerar efeitos na pandemia do coronavírus.
Pela via da ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 442 deseja-se a revisão dos artigos 124 (aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento – pena – detenção, de um a três anos) e 126 (aborto provocado por terceiro com consentimento da gestante – reclusão, de um a quatro anos) do Código Penal sob a ótica da Constituição Federal.
Pois bem. Os principais argumentos da ADPF nº442 são, a saber: a) que a dignidade e a cidadania das mulheres são violadas pelo Estado quando as criminaliza pela prática do abordo, negando-lhes a autonomia para tomar suas próprias decisões; b) mais de meio milhão de mulheres realizam abordos clandestinos por ano no prazo, sendo que somente as mais pobres são penalizadas, em especial as negras, indígenas e nordestinas; c) a escolha do momento da maternidade deve ser da mulher, se quer ou não ter filhos e o momento adequado para tanto; d) a questão deve ser decida no Supremo porque quando tal tema tramita no Congresso fica sujeito à pressões religiosas e a comportamentos morais;
Os argumentos expostos na ADPF º 442 parecem não considerar que a legislação brasileira já autoriza hipóteses em que o aborto pode ser praticado sem que seja considerado crime pelo Código Penal. O primeiro caso encontra-se no art. 128 do Código Penal ao disciplinar que “não se pune o aborto praticado por médico se não houver meio de salvar a vida da gestante” (abordo necessário); se “a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal” (aborto no caso de gravidez resultante de estupro).
Além disso, o Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 54 julgou procedente o pedido da ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II do Código Penal. Em resumo, a decisão proferida em abril de 2013, na prática, possibilitou outra forma de aborto além das que já eram previstas na legislação penal.
Em síntese, a legislação já permite o aborto nas seguintes situações: a) risco de vida para a mãe, quando no caso não haverá qualquer punição ao médico; b) aborto resultado de estupro e consentido pela mãe ou, quando incapaz, pelo seu representante legal; c) no caso do feto anencéfalo pela interpretação dada pela Suprema Corte na ADPF nº 54.
A ADFP ajuizada pelo PSOL, portanto, deseja que além das hipóteses acima já especificadas, sejam descriminalizados os artigos 124 e 126 do Código Penal, possibilitando a mulher provocar aborto em si mesma e permitir que outra pessoa o faça e, também, permitir a prática do aborto (por um médico, por exemplo), desde que tenha o consentimento da gestante.
Não bastasse isso, o Supremo Tribunal Federal decidiu incluir também na sua pauta o julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 5.581 que pede direito à interrupção da gravidez de mulheres infectadas pelo zika vírus e em sofrimento mental. Essa matéria, considerando que a questão do zika vírus à época se tratava de uma epidemia pode ter repercussões diretas como a pandemia atual do coronavírus.
Nesse sentido, diante das hipóteses já contempladas pela legislação penal, os argumentos apresentados em prol da descriminalização do aborto podem ser rebatidos de forma contundente, senão vejamos.
Ao se criminalizar o aborto se está criminalizando um atentado à vida. A conduta da mulher que atenta contra a vida do embrião ou feto (a partir da oitava semana depois de ocorrida a fertilização do óvulo pelo espermatozoide o embrião passa a ser chamado de feto) é considerada crime e não se relaciona à sua condição de cidadã ou da sua dignidade. O princípio da autonomia da vontade encontra limitações na própria efetividade dos direitos humanos. E o direito à vida é um direito fundamental de primeira dimensão. A autonomia da vontade (o direito que a mulher tem em relação ao uso do seu corpo) se curva ao direito à vida.
Na verdade, mecanismos de acolhimento devem ser criados em prol das mulheres que desejam praticar um aborto. Esses mecanismos podem partir do Estado através de políticas públicas, mas podem partir das próprias instituições, como a Igreja. Pastorais de Acolhimento da Gestante podem ser criadas com o objetivo de prestar apoio psicológico e afetivo, a fim de que tais mulheres possam optar pela vida, mesmo que estejam em situação de grave vulnerabilidade, seja econômica ou psicológica.
As instituições são importantíssimas para se efetivar o conceito de justiça e de equidade. Pessoas mais vulneráveis nos fazem entender melhor o princípio da diferença. O princípio da diferença impõe o conceito de equidade. Quem é mais vulnerável necessita de um apoio (ou suporte maior) das instituições.
Se a mulher quer ou não ter filhos, com efeito, deve ser uma decisão compartilhada. Mas se ocorre uma gravidez não planejada, isso, por si só, não lhe concede o direito de praticar um aborto. O fato colocaria nas mãos das mulheres uma espécie de direito de decidir quem vive e quem morre em relação à sua prole. Em tese, não haveria diferença se a mulher optasse por suprimir a vida de um feto de 12 semanas um de uma criança de 12 meses. Como dito, mesmo que o direito ao uso do seu corpo tenha uma natureza fundamental, ele também deve se curvar ao direito à vida, em especial daquele que se encontra no seu ventre.
O Supremo Tribunal Federal vem ocupando espaços em face da omissão do Poder Legislativa em assumir seu protagonismo. O debate no Poder Legislativo é muito mais legitimo, pois os parlamentares estão mais aptos a esse debate, já que refletem a complexa cadeia de interesses de sociedade, inclusive em relação a tema tão delicado. Quando uma questão assim passa a ser decida pelo Poder Judiciário, análises sociológicas, históricas, morais ou filosóficas podem ser esquecidas em prol do protagonismo apenas e tão somente da perspectiva jurídica.
A luta pela conquista dos direitos humanos das mulheres jamais será minorada ou prejudicada pelo resguardo da vida daquele que se encontra num ventre, esperando a oportunidade de viver, mesmo com limitações e dificuldades. O dom da vida é o pilar da dignidade de todo e qualquer ser humano.
Por Carlos Wagner Araújo Nery da Cruz
Magistrado, Professor Efetivo do Curso de Bacharelado em Direito da UESPI, Presidente da Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos e
Mestre em Direito – PUCRS