As Escrituras Sagradas é um lugar privilegiado de encontrar com Deus. O livro do Êxodo (33,11) diz que “o SENHOR falava com Moisés face a face, como um homem fala com seu amigo”. Por isso a Bíblia deve entrar nas famílias, para que pais e filhos a leiam e rezem com ela; a fim de que ela seja uma lâmpada para seus passos nos caminhos da vida (cf. Sl 119).Trata-se de contemplar o rosto de Deus que se revela nos testemunhos escriturados e deixar-se guiar por essa “carta de amor” que Deus enviou para consolar os nossos corações.
Antes de começar a leitura orante e contemplativa da Palavra de Deus – lectio divina – é preciso silenciar o coração para encontrar Deus na brisa leve da Palavra (1 Rs 19,9-16); e, como um bom discípulo, “abrir os ouvidos e prestar atenção” (Is 50,4-5), tirar as sandálias dos pés (Ex 3,1-6), pois estamos pisando numa “Terra Santa”, num chão sagrado.
A leitura orante não é intelectual. Como o próprio nome diz, é uma leitura orante, espiritual da Bíblia. É uma forma de oração e contemplação pessoal e comunitária feita a partir das Escrituras Sagradas. É um modo de falar com Deus com a própria Palavra de Deus. Em síntese, a leitura orante nos situa na tensão fecunda de conversão ao Evangelho, pois o processo que nela se realiza é um itinerário que leva aos caminhos contemplativos de amor e serviço.
A este propósito, porém, “deve-se evitar o risco de uma abordagem individualista, tendo presente que a Palavra de Deus nos é dada precisamente para construir comunhão, para nos unir na Verdade no nosso caminho para Deus. Sendo uma Palavra que se dirige a cada um pessoalmente, é também uma Palavra que constrói comunidade, que constrói a Igreja. Por isso, o texto sagrado deve-se abordar sempre na comunhão eclesial. Com efeito, é muito importante a leitura comunitária, porque o sujeito vivo da Sagrada Escritura é o Povo de Deus, é a Igreja” (Bento XVI, Verbum Domini, n. 86).
Este “método” de leitura da Bíblia que tem sua origem no século XII (ano 1150) com um monge chamado Guido, nos propõe um itinerário com quatro degraus: leitura, meditação, oração, contemplação.
PRIMEIRO DEGRAU: leitura – O que o texto está diz em si?
Uma leitura pausada, silenciosa e orante é uma chave eficaz para abrirmos o texto sagrado. É uma forma de nos colocamos aos pés do Mestre para escutar a sua Palavra (cf. Lc 10, 38-42). É uma leitura feita a dois: o Espírito Santo que inspirou o autor sagrado e a pessoa que lê com fé, “no mesmo espírito em que o texto foi escrito”. É preciso entender bem as palavras, verificar quem são os personagens envolvidos, a quem o autor dirige o texto, qual o seu contexto, seu gênero literário, etc. Numa palavra, é preciso ler o texto procurando conhecer e entender tudo o que está escrito, pois o texto fala.
Como nos lembra o Papa Francisco (EG, n. 152): “a leitura espiritual de um texto deve partir do seu sentido literal. Caso contrário, uma pessoa facilmente fará o texto dizer o que lhe convém, o que serve para confirmar as suas próprias decisões, o que se adapta aos seus próprios esquemas mentais. E isto seria, em última análise, usar o sagrado para proveito próprio e passar confusão para o povo de Deus. Nunca devemos esquecer-nos de que, por vezes, ‘também satanás se disfarça em anjo de luz’ (2 Cor 11, 14)”.
SEGUNDO DEGRAU: meditação – O que o texto diz para mim?
Meditar é ruminar o texto. “Mastigar” com a mente e com o coração (cf. Ez 3,1), saboreando cada palavra, fazendo com que um texto antiquíssimo se torne novo para mim, para nós. “Na presença de Deus, numa leitura tranquila do texto, é bom perguntar-se, por exemplo: ‘Senhor, a mim que me diz este texto? Com esta mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é que me dá fastígio neste texto? Por que é que isto não me interessa?’; ou então; ‘De que gosto? Em que me estimula esta Palavra? Que me atrai? E por que me atrai?’ (Papa Francisco, EG, n. 153). Deus é sempre paciente conosco, Ele apenas quer que olhemos com sinceridade a nossa vida e a apresentemos sem fingimento diante dos seus olhos.
A meditação profunda da Palavra nos ajuda a não deixarmos cair no chão nenhuma palavra. Como nos exorta São Jerônimo:“Quando vamos receber o Mistério [eucarístico], se cair uma migalha sentimo-nos perdidos. E, quando estamos a escutar a Palavra de Deus e nos é derramada nos ouvidos a Palavra de Deus que é carne de Cristo e seu sangue, se nos distrairmos com outra coisa, não incorremos em grande perigo?”. Realmente presente nas espécies do pão e do vinho, Cristo está presente, de modo semelhante, também na Palavra de Deus (Verbum Domini, n. 56).
A meditação nos ajuda a aprofundar o texto, buscando chegar mais perto da sua mensagem de vida e salvação. Ela situa o texto em nossa realidade pessoal e comunitária, faz arder o nosso coração, abre os nossos olhos para ver a nossa realidade (cf. Lc 24, 13-35). Como as abelhas, a meditação nos ajuda a extrair o sabor mais puro do texto e degustá-lo. É uma atividade que envolve a inteligência, a afetividade e a realidade concreta da vida. Assim, a meditação se torna em nós fonte de oração e contemplação. Em síntese, a meditação visa encarnar a Palavra de Deus em nós!
TERCEIRO DEGRAU: oração – O que o texto lido e meditado me faz dizer a Deus?
A Palavra divina nos introduz no diálogo com o Senhor: o Deus que fala, ensina-nos como podemos falar com Ele. Como explica Santo Agostinho: “a tua oração é a tua palavra dirigida a Deus. Quando lês, é Deus que te fala; quando rezas, és tu que falas a Deus”.
Toda autêntica espiritualidade cristã nasce e se desenvolve no contato íntimo com a Palavra de Deus. A nossa oração é uma resposta à Palavra que Deus mesmo nos dirigiu. Foi Deus quem tomou a iniciativa de nos falar, porque Ele nos amou primeiro (cf. 1 Jo 4,10). “Nós não procuramos Deus tateando, nem precisamos esperar que Ele nos dirija a palavra, porque realmente ‘Deus falou, já não é o grande desconhecido, mas mostrou-Se a Si mesmo’” (Papa Francisco, EG, n. 175).
A oração é esta conversa amiga que tecemos com Deus, que nos enviou a sua Palavra e espera de nós uma resposta. Na Palavra de Deus está toda a nossa vida que procura tornar-se palavra viva, letra escrita em carne viva (cf. 2 Cor 3,3). Por isso a oração que brota da Palavra pode assumir diversas formas, conforme as necessidades e inspirações de cada pessoa ou realidade da comunidade: pode ser perdão, louvor, súplica, ação de graças, etc.
Na nossa oração devem estar presente também os nossos irmãos e irmãs, com suas alegrias e esperanças, tristezas e angústias, sobretudo os pobres e sofredores. “Porque a contemplação que deixa de fora os outros é uma farsa” (Papa Francisco, EG, n. 281). Assim sendo, a oração autêntica não se fecha em si mesma. Pode-se dizer que a oração mais agradável a Deus é aquela que nos faz sair de nós mesmos, para colocar Deus e o seu projeto de amor no centro de nossa vida. Nesse sentido o Papa Francisco nos recomenda, “há que rejeitar a tentação de uma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação” (EG, n. 262).
QUARTO DEGRAU: contemplação – O que o texto me inspira a ser e a fazer?
A contemplação é o ponto alto da oração. É o ponto de chegada e de partida. É o momento de saborear a presença amorosa de Deus que nos fala por meio de sua Palavra. É como um fruto saboroso que amadureceu na leitura orante. É fixar o olhar e coração em Deus, porque contemplar é amar. É sentir, pela fé, a presença de Deus ao nosso lado.
Esse sentimento da presença de Deus próximo de nós nos faz mudar o coração; converte a nossa maneira de pensar e agir. Quando a pessoa se encharca de Deus, então começa a olhar tudo com outro olhar, passamos a enxergar tudo com o olhar compassivo de Jesus Cristo. Um espírito contemplativo olha para o mundo com amor e esperança. Descobre a presença de Deus em toda parte, de modo especial no rosto do outro.
A oração contemplativa da Palavra se traduz sempre em missão. É a mística ungindo a ação missionária. Numa espiritualidade que nos leva, pela ação do Espírito Santo, a uma conformação com a Palavra viva e encarnada Jesus Cristo em todas as circunstâncias da vida, ao ponto de podermos dizer como Paulo: “não sou eu quem vivo é Cristo quem vive em mim!”
Resumindo
Como pudemos ver, a leitura orante da Bíblia (Lectio Divina) é um caminho de escuta, meditação, oração e contemplação da Palavra de Deus que se faz vida em nossas vidas. Os quatro degraus estão interligados, de modo que, às vezes, já na leitura iniciamos a meditação e, antes de terminarmos a meditação já estamos rezando e contemplando o grande mistério de amor que se abre a nós. Este jeito de rezar com a Palavra de Deus e, a partir dela, é a maneira como o Povo de Deus sempre rezou: recordando os grandes feitos do Senhor, percebemos a sua ternura e bondade para conosco, e confiamos a Ele a nossa vida, num ato de fé e esperança (cf. Lc 1, 46-55).
A nossa vida missionária, o nosso testemunho profético, as nossas atividades pastorais precisam ser ungidos com o azeite da oração. “Sem momentos prolongados de adoração, de encontro orante com a Palavra, de diálogo sincero com o Senhor, as tarefas facilmente se esvaziam de significado, quebrantamo-nos com o cansaço e as dificuldades, e o ardor apaga-se” (Papa Francisco, EG, n. 262).
A leitura orante da Palavra de Deus, pessoal ou em família, é um modo eficaz de nos manter conectados com Deus e com os outros, principalmente com os que mais sofrem. Fechamos a porta da nossa casa para proteger a nossa vida e a vida dos outros, mas abramos a janela do coração a Deus e aos outros, pois seremos salvos pela caridade.