- A COMUNIDADE PARA O TEXTO
“Se o apóstolo Paulo não houvesse escrito outra coisa além desta secção, além deste grande hino ao amor, bastaria isso para classificá-lo como um dos maiores autores de todos os tempos” (CHAMPLIN,1983, p. 201). O Hino à Caridade na Primeira Carta aos Coríntios (cf. 13,1-13) deve-se, primeiro, à intimidade inspirada do seu autor, o apóstolo Paulo, e certamente, logo depois, ao zelo missionário diante do particular contexto da comunidade a que se dirige na ocasião, a Igreja de Deus em Corinto. Como ele mesmo narra, não buscou entre os coríntios o brilho de artifícios ou da retórica, mas uma demonstração do Evangelho inspirada no poder do Espírito (cf. 1Cor 2,2-5).
Em Corinto, “não há muitos intelectuais, nem muitos poderosos, nem muitos da alta sociedade” (1Cor 1,26); praticamente dois terços da população eram escravos. Por isso, nesta comunidade de fracos, da qual nada se espera, “Jesus que se fez escravo (cf. Fl 2,5-11), e Paulo, que, embora livre em relação a todos, tornou-se o servo de todos (cf. 1Cor 9,19), são a presença do Deus fiel que mantém a aliança e o amor por mil gerações” (BORTOLINI, 1992, p. 11). Para a pequena assembleia de Corinto, maximamente de uma centena de cristãos, de raças e origens diversas, as exigências da caridade evangélica são um desafio no seio de uma comunidade chamada a dar frutos na fé.
Ao tempo que era uma comunidade cristã dinâmica e rica em dons e carismas (cf. 1Cor 14,1-25), a Igreja de Corinto foi marcada igualmente por sérios conflitos. Essas tensões, conforme Bortolini (1992, p. 15-17), são principalmente dez: as “panelinhas”; o grave problema de alguém que vivia com a madrasta; as causas da assembleia cristã levadas aos tribunais pagãos; a prostituição; as dúvidas acerca do matrimônio, celibato, divórcio, virgindade, escravidão, viuvez; o conflito entre “fortes” e “fracos”, sobretudo no que se refere às carnes sacrificadas aos ídolos; a reivindicação das mulheres; a incoerência na celebração da eucaristia; a questão crucial dos carismas (os coríntios valorizavam somente os dons extraordinários); a negação da ressurreição dos mortos. No aconselhamento às divergências da assembleia cristã em Corinto, Paulo desenvolveu uma rica teologia, exposta em três cartas: a primeira, de que se conhece apenas a existência (cf. 1Cor 5,9), e as duas canônicas, 1Cor e 2Cor.
- O TEXTO PARA A COMUNIDADE
O Hino à Caridade insere-se na argumentação desenvolvida pela primeira entre as Cartas canônicas aos Coríntios. Brown (2012, p. 679), considerando o conteúdo, afirma pertencer o hino à seção “12,1 – 14,40: Terceira parte: problema dos carismas e a resposta da caridade”, no corpus da epístola. Conforme o uso da Bíblia de Jerusalém para a titulação de perícopes, 1Cor 13 marca o centro da série de recomendações paulinas sobre “a boa ordem nas assembleias” (11,2-14,40), precedido de exortações sobre “a conduta dos homens e das mulheres” (11,2-16), “a ‘Ceia do Senhor’” (11,17-34), “os dons do Espírito ou ‘carismas’” (12,1-3), “diversidade e unidade dos carismas” (12,4-11) e “comparação do corpo” (12,12-30), e sucedido por esclarecimentos acerca da “hierarquia dos carismas em vista do bem comum” (14,1-25) e “os carismas, regras práticas” (14,26-40). O capítulo treze não apresenta, portanto, uma simples interpolação, como pensaram certos autores, mas encerra “o ápice da doutrina da epístola” (ROBERT; FEUILLET, 1968, p. 50), desde que a entendamos como dirigida à vocação da comunidade para o verdadeiro amor.
“A noção que Paulo tem do amor está baseada na autodoação de Cristo” (BROWN, 2012, p. 705), como atesta Rm 5,8: “Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores”. Falando ao mundo helênico, Paulo afasta a compreensão passional da cadeia de interesses do eros e identifica o amor cristão com o ágape “que começa em Deus, que não tem necessidade das suas criaturas, mas que, mediante o amor, dá-lhes existência e as enobrece” e, desse modo, “praticamente torna o amor e Cristo intercambiáveis” (BROWN, 2012, p. 705).
Quanto à estrutura literária, seja a Bíblia de Jerusalém seja a TEB concordam com uma divisão do Hino à Caridade em três seções: a superioridade da caridade (1Cor 13,1-3); suas obras (13,4-7) e sua perenidade (13,8-13).
Alguns exegetas reivindicam para a primeira seção a inclusão do último versículo de 1Cor 12: “Aspirai aos dons mais altos. Aliás, passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a todos” (v. 31), uma espécie de mote ao hino. Os versículos inaugurais do capítulo treze, por sua vez, são a constatação paulina dirigida aos membros da Igreja de Corinto doentes pela exaltação e pelo exibicionismo dos carismas que julgam ser os mais elevados. Tem grande significado o fato de que “Paulo começa citando justamente os carismas ambicionados pelos ‘fortes’: falar em línguas, profecia, conhecimento, fé etc. Sem o amor-solidariedade eles não têm sentido” (BORTOLINI, 1992, p. 58). O poeta da caridade abusa do tom hiperbólico para falar dos carismas ambicionados (o dom das línguas, a profecia, o conhecimento, a fé que move montanhas, a benfeitoria e o martírio). Mesmo que sob a forma condicional de uma excelente medida, sobre todos esses dons, o apóstolo ratifica a supremacia da caridade, único bem necessário e digno de real aspiração, como faz notar imediatamente antes e depois da perícope (cf. 12,31; 14,1a).
Na segunda seção, Paulo dedica-se às obras da caridade. Não preocupa-se em defini-la, mas em descrever sua ação polivalente. Bosch (2002, p. 190) a traduz como os “modos de atuar próprios da caridade”. Para Barbaglio (1989, p. 335), “trata-se de uma força operativa literalmente personificada. Na realidade, é especificado como age a pessoa que é movida pelo amor”. Tal agir se expressa em formas verbais cuidadosamente escolhidas pelo autor: é paciente, é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se enche de orgulho, não é inconveniente, não procura seu interesse, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, regozija com a verdade, desculpa, crê, espera, suporta. Grande parte dos comentadores do epistolário paulino admitem quinze verbos, enquanto exegetas como Raymond Brown sustentam que a seção estende-se até o v. 8a (“A caridade jamais passará”) e reconhece, então, dezesseis verbos. As obras da caridade são ainda o retrato do agir misericordioso de Cristo expresso nos Evangelhos, oferecendo o paradigma do amor capaz de remediar feridas existenciais e de responder aos dramas concretos da vida e das comunidades cristãs, como a Igreja de Corinto.
A última seção, sobre a perenidade da caridade, elabora uma “antítese”, porque contrapõe a realidade limitada e imperfeita dos carismas àquela da perfeição cristã na caridade. “Os dois polos opostos – permanência e caducidade – combinam-se, pois, com a bipolaridade de perfeição e limitação. Acrescenta-se, como complemento da tese do v. 8, que a realidade perfeita substitui, por superação, o que é imperfeito (v. 10)” (BARBAGLIO, 1989, p. 339). A comparação entre a idade infantil e a idade adulta é uma parábola para uma outra antítese: entre o “agora” e o “então”, entre o tempo histórico atual, na qual os carismas e dons extraordinários podem até ser úteis, e o mundo futuro do reino, onde o amor será o perfeito conhecimento e a própria perfeição. No ambiente escatológico do mundo futuro, Paulo declara que a caridade triunfa mesmo entre a tríade teologal, porque a fé verá o que acreditou e a esperança o que desejou. A perenidade do amor, porém, é a imortalidade de Deus, como afirmou o Papa emérito Bento XVI (2006, p. 256): “Se todo o amor aspira à eternidade, o amor de Deus não só aspira a ela como cria e é a eternidade”.
Não parece inconveniente dizer que o Hino à Caridade de 1Cor 13 condensa o essencial da história da salvação quando orienta para a vocação cristã ao amor verdadeiro. Revela o agir amoroso de uma Pessoa, de um rosto: Cristo, o amor encarnado do Pai (cf. Jo 1,14), que é Amor (cf. 1Jo 4,8.16). Sendo a caridade um dom de Deus derramado em nossos corações (cf. Rm 5,5), Paulo insiste com a Igreja de Corinto, como que repetindo às comunidades cristãs de hoje, não menos feridas por sérias divisões e conflitos: “Aspirai à caridade” (1Cor 14,1a). Em nosso tempo, a fim de que os ministérios e carismas na vida da comunidade não ameacem ofender a sua divina Fonte, o Hino à Caridade, sugere Bento XVI, “deve ser a carta magna de todo o serviço eclesial” (Deus Caritas Est, n. 34). A solução de Corinto é a da Igreja em qualquer parte: a perfeição do amor.