Morte, palavra e acontecimento ainda tão temido no nosso cotidiano. Por que é tão difícil falar da morte? Não podemos negar que há quem ainda insista negar esse aspecto tão natural do ciclo da vida. “Deixar de pensar na morte não a retarda ou evita. Pensar na morte pode nos ajudar a aceitá-la e a perceber que ela é uma experiência tão importante e valiosa quanto qualquer outra” (Philippe Ariès); comentar sobre ela induz a refletir sobre a morte dos que são próximos de nós, a nossa própria morte e como será o nosso morrer. Nos expõe e obriga a repensar a vida, nossos afetos, nossos valores, nossa fé. Edgar Morin alega que é impossível conhecer o ser humano “sem lhe estudar a morte, porque, talvez mais do que na vida, é na morte que o homem se revela. É nas suas atitudes e crenças perante a morte que o homem exprime o que a vida tem de mais fundamental”.
A Igreja Católica nos ensina que a morte é o enigma que mais atormenta a condição humana, não apenas pela dissolução do corpo, mas também, pelo medo de “que tudo acabe para sempre” (Gaudium Et Spes, 18); “é o terror do desenlace de um evento único e definitivo, que combatemos e evitamos durante toda nossa vida” (Elzirik e Bassols). Entretanto, em cada um de nós existe o germe da eternidade, “irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte” (Idem). A Igreja sempre alertou para nos prepararmos para o momento da morte. O Catecismo da Igreja Católica (CIC) diz claramente que:
“A Igreja nos encoraja à preparação da hora de nossa morte (Livrai-nos, Senhor, de uma morte súbita e imprevista: antiga ladainha de todos os santos), a pedir à Mãe de Deus que interceda por nós ‘na hora de nossa morte’ (oração da Ave-Maria) e a entregar-nos a S. José, padroeiro da boa morte: Em todas as tuas ações, em todos os teus pensamentos deverias comportar-te como se tivesse de morrer hoje. Se tua consciência estivesse tranquila, não terias muito medo da morte. Seria melhor evitar o pecado que fugir da morte. Se não estás preparado hoje, como o estarás amanhã? Louvado sejais, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal, da qual homem algum pode escapar. Ai dos que morrerem em pecado mortal, felizes aqueles que ela encontrar conforme a vossa santíssima vontade, pois a segunda morte não lhes fará mal.” (CIC, §1014).
São Paulo afirma que “o salário do pecado é a morte” (Rom 6, 23). Por consequência do pecado original a morte existe e faz parte do desenvolvimento humano, acompanhando-nos desde o nascimento, deixando marcas significativas. Não era plano de Deus destinar a morte à humanidade. Ele nos criou “para a imortalidade, […] à imagem de sua própria natureza” (Sab 2, 23), para a vida. Para o cristão a morte não deve ser entendida como um fim obscuro e melancólico, pois, crendo na vida eterna, os que morrem na graça de Cristo participam também da sua Ressureição.
A morte é destinada a todo ser vivo, inclusive Cristo a experimentou. “O Filho de Deus sofreu também Ele a morte, própria da condição humana. Todavia, apesar de seu pavor diante dela, assumiu-a em um ato de submissão total e livre à vontade de seu Pai. A obediência de Jesus transformou a maldição da morte em bênção” (CIC, §1009). “Sabemos que Cristo, tendo ressurgido dos mortos, já não morre, nem a morte terá mais domínio sobre ele. Morto, ele o foi uma vez por todas […]; porém, está vivo, continua vivo para Deus” (Rom 6, 9-10).
Cristo ressuscitou com o seu próprio Corpo, mas não voltou a uma vida terrestre. Sendo assim, ensinou o IV Concílio do Latrão, (DS, 801) que “todos ressuscitarão com seu próprio corpo, que tem agora”; porém, este corpo será “transfigurado em corpo de glória” (Fl 3,21), em “corpo espiritual” (1Cor 15,44). Cada pessoa “recebe em sua alma imortal a retribuição eterna a partir do momento da morte, num Juízo Particular que coloca sua vida em relação à vida de Cristo, seja por meio de uma purificação, seja para entrar de imediato na felicidade do céu, seja para condenar-se de imediato para sempre. No entardecer de nossa vida, seremos julgados sobre o amor” (CIC, §1022).
E como é que os mortos ressuscitam? O Catecismo responde essa questão através das respostas de outras quatro estimadas perguntas:
O que é ressuscitar? “Na morte, separação da alma e do corpo, o corpo do homem cai na corrupção, enquanto a sua alma vai ao encontro de Deus, embora ficando à espera de se reunir ao seu corpo glorificado. Deus, na sua omnipotência, restituirá definitivamente a vida incorruptível aos nossos corpos, unindo-os às nossas almas pela virtude da ressurreição de Jesus” (CIC, § 997).
Quem ressuscitará? “Todos os homens que tiverem morrido: ‘Os que tiverem praticado o bem, para uma ressurreição de vida e os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de condenação’ (Jo 5, 29) (574)” (CIC, § 998).
Como? “Cristo ressuscitou com o seu próprio corpo: ‘Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo’ (Lc 24, 39); mas não regressou a uma vida terrena. De igual modo, n’Ele ‘todos ressuscitarão com o seu próprio corpo, com o corpo que agora têm’ (575), mas esse corpo será ‘transformado em corpo glorioso’ (576) em ‘corpo espiritual’ (1 Cor 15, 44): ‘Alguém poderia perguntar: ‘Como ressuscitam os mortos? Com que espécie de corpo voltam eles?’ Insensato! O que tu semeias não volta à vida sem morrer. E o que semeias não é o corpo que há-de vir, é um simples grão […]. O que é semeado sujeito à corrupção ressuscita incorruptível; […] os mortos ressuscitarão incorruptíveis […]. É, de facto, necessário que este ser corruptível se revista de incorruptibilidade, que este ser mortal se revista de imortalidade’ (1 Cor 15, 35-37. 42. 52-53)” (CIC, § 999).
“Este ‘como’ ultrapassa a nossa imaginação e o nosso entendimento; só na fé se torna acessível. Mas a nossa participação na Eucaristia dá-nos já um antegozo da transfiguração do nosso corpo, operada por Cristo: ‘Assim como, depois de ter recebido a invocação de Deus, o pão que vem da terra deixa de ser pão ordinário e é Eucaristia, constituída por duas coisas, uma terrena, outra celeste, do mesmo modo os nossos corpos, que participam na Eucaristia, já não são corruptíveis, pois têm a esperança da ressurreição’ (577) (CIC, § 1000).
Quando? “‘Definitivamente o no último dia’ (Jo 6, 39-40.44.54; 11, 24), ‘no fim do mundo’ (578). Com efeito, a ressurreição dos mortos está intimamente associada à Parusia de Cristo: ‘Ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, o próprio Senhor descerá do céu e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro’ (1 Ts 4, 16) (CIC, § 1001).
É certo que todos morrerão e ressuscitarão. “Os que tiverem feito o bem sairão para uma ressurreição de vida; os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de julgamento.” (Jo 5, 29; cf. Dn 12,2). Sabiamente, a Liturgia da Igreja, transparece aos que a certeza da morte entristece, que a promessa da imortalidade consola, pois, para quem crê em Nosso Senhor, “a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível” (Prefácio dos Mortos I).
O Catecismo ensina que “graças a Cristo, a morte cristã tem um sentido positivo. ‘Para mim, a vida é Cristo, e morrer é lucro’ (Fl 1,21). ‘Fiel é esta palavra: se com Ele morremos, com Ele viveremos’ (2Tm 1,11). A novidade essencial da morte cristã está nisto: pelo Batismo, o cristão já está sacramentalmente ‘morto com Cristo’, para Viver de uma vida nova; e, se morrermos na graça de Cristo, a morte física consuma este ‘morrer com Cristo’ e completa, assim, nossa incorporação a ele em seu ato redentor: É bom para mim morrer em (“eis”) Cristo Jesus, melhor do que reinar até as extremidades da terra. É a Ele que procuro, Ele que morreu por nós: é Ele que quero, Ele que ressuscitou por nós. (CIC, §1010). Santa Teresinha dizia: “Não morro, entro para a vida”.
A humilde oração de São Francisco diz que “é morrendo que se vive para a vida eterna”, ou seja, a vida eterna é de fato a vida que merecemos, pois esta não passa de um “estágio”. O santo dos pobres, no “Cântico das Criaturas”, assim rezou: “Louvado sejais, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal, da qual homem algum pode escapar. Ai dos que morrerem em pecado mortal, felizes aqueles que ela encontrar conforme a vossa santíssima vontade, pois a segunda morte não lhes fará mal”.
Morrer aos poucos é o preço de se estar vivo; viver é adiar a data da morte. Essa realidade inevitável e irreversível deve nos conscientizar que a qualquer momento podemos morrer, embora não saibamos exatamente quando irá acontecer. Devemos viver com responsabilidade arraigada ao amor e a misericórdia de Deus, nosso Pai, antes que seja tarde e “o pó volte à terra de onde veio, e o sopro volte a Deus que o concedeu” (Eclo 12, 2.7). Escreveu padre François Rabelais: “Conheço muitos que não puderam, quando deviam, porque não quiseram quando podiam”, isto é, “Não adianta lamentar por aquilo que não pode fazer hoje, se algum dia pôde e escolheu não fazer”. Todavia, existe a possibilidade do arrependimento: de pedirmos perdão, nos reconciliar e fazer diferente.
Adentrar à intimidade de um cemitério, passear dentre os túmulos ou olhar figuras de esqueletos, nos colocam diante de uma situação imaginária, porém real pelo aspecto físico e educativo, que descreve: “És o que fomos; serás o que somos”. Eis que a brevidade da vida é espantosa, por isso que o tempo é ouro e desperdiçá-lo é tolo.
Um dia todos nós morreremos – a finitude é uma possibilidade concreta –, mas de certo modo ficaremos, “seja na produção teórica ou nos exemplos, que passam a ser referências para outras gerações” (Adão Peixoto), pois “o que sobra é a obra, o resto soçobra” (Lêdo Ivo); a obra é tudo aquilo que dá sentido à nossa história de vida, guardada na memória dos que ficam e que um dia também passarão. “Não é fácil lidar com a morte, mas ela espera por todos nós…” (Philippe Ariès). Portanto, não esperemos a morte bater à nossa porta para refletir nossas atitudes, rever nossas metas e valorizar a beleza da vida: Cristo Jesus. Para que demorarmos mais para encontrar um sentido para vida? “A vida é muito curta para ser pequena” (Benjamin Disraeli).
Uma boa morte para mim, para você, os seus e aos demais.
São José, padroeiro da boa morte, rogai por nós!
Clemerson Luís Silva
Acadêmico do curso de Psicologia – Unit/AL
Membro do Movimento EJC – Poço – Maceió